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Blog do Marcelo Alonso

Amigos, amigos, cinturões à parte

Todos os capítulos dos 10 anos de parceria entre Anderson Silva e Ronaldo Jacaré

Amigos, amigos, negócios à parte. Nenhum ditado popular define com maior propriedade o conflito de interesses entre amizade e a busca de um sonho profissional em comum. Quando duas pessoas lutam pelo mesmo objetivo na mesma área (no caso na mesma divisão), é natural que, cedo ou tarde, ocorram conflitos de interesse.

"A realidade é que o Anderson está voltando de doping e está fora do ranking. Será que seu começar a fazer um monte de besteiras, consigo lutar pelo cinturão?"

Nesta segunda, em coletiva em sua academia em Los Angeles, foi a vez de Anderson Silva se dizer triste com a declaração do amigo, como reproduzido pelo Combate.com.

“Confesso que fiquei um pouco surpreendido porque eu sempre dei todo o suporte pro Jacaré, inclusive quando ele chegou na academia. Eu o recebi muito bem e sempre estive do lado dele e sempre o defendi toda vez que ele lutou para que ele pudesse disputar esse cinturão. Acho que ele foi infeliz nos comentários, mas algumas coisas a gente não tem como controlar… Todo mundo sabe a minha história nesse esporte e o quanto eu trabalhei duro para continuar fazendo o que eu faço”.

A polêmica entre Anderson e Jacaré dividiu os fãs e incendiou as mídias sociais nos últimos dias. Como toda história que envolve amizade, hierarquia e interesses profissionais, esta é bastante complexa. Na seqüência listei alguns dos mais relevantes capítulos desta novela que já dura 10 anos.

O Real Madrid do MMA

Tudo começa em 2008. Em abril daquele ano fiz uma matéria com Randy Couture em Las Vegas, onde, após revelar sua felicidade por ter os brasileiros Ronaldo Jacaré e Wanderlei Silva (recém saído da Chute Boxe) treinando na X-Treme Couture, ele se dizia muito impressionado com Ronaldo Jacaré e apostava que o capixaba tinha todas as ferramentas para vencer Anderson Silva (que acabara de finalizar seu amigo Dan Henderson no mês anterior em sua 4ª defesa de cinturão). A matéria acabou virando capa da Revista Tatame, com as aspas de Randy em destaque.

Obviamente naquele momento a declaração não tinha a menor importância para Anderson, que já era o grande nome do UFC, enquanto Jacaré acabava de fazer sua estreia vitoriosa no evento japonês Dream.

O inimigo íntimo que preocupava Spider naquele momento era outro, Vitor Belfort, que na época lutava no Affliction e ensaiava uma reaproximação com os irmãos Nogueira. Anderson sabia que, caso voltasse ao UFC, Belfort seria um oponente em potencial, como acabou ocorrendo, por isso nem comentou a aposta de Couture.   

Mas em 2009 a história começou a tomar novos contornos quando Jacaré resolveu voltar para o Brasil e, com a ajuda do amigo André Galvão, foi levado a X-Gym. Curiosamente, Belfort acabara de assinar com o UFC e os ecos da declaração de Couture vieram à tona, dificultando a entrada de Jacaré no time. Como diz o ditado, “cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça”. Anderson foi inicialmente contra a ideia de ter outro oponente em potencial treinando no mesmo time, mas acabou convencido por Josuel Distak e Rogerão de que sua entrada seria importante para transformar a equipe na maior potência do MMA mundial, afinal de contas, Jacaré não havia falado nada sobre Anderson e acabara de estrear no Strikeforce, onde Rafael Feijão, melhor amigo do Spider, já caminhava a passos largos para conquistar o cinturão dos meio-pesados.

E o plano de Distak não tardou a sair do papel. Em 2010, a X-Gym era a única equipe do mundo com três cinturões: Anderson (peso-médio UFC), Ronaldo Jacaré (peso-médio Strikeforce) e Rafael Feijão (meio-pesado, Strikeforce).

Apesar de nunca ter Jacaré entre os amigos mais próximos, Anderson treinou bastante com ele nesse momento inicial, mas obviamente os anos passaram e, com uma sequência de sete vitórias em oito lutas, as pressões para o bicampeão mundial absoluto de jiu-jítsu migrar para o UFC começaram a aumentar. O fato é que em 2012 o mundo todo já via Jacaré entre os cinco melhores médios do mundo e ninguém conseguia entender porque ele se mantinha lutando desmotivado no 2º maior evento do mundo. Aos poucos os dois começaram a se distanciar, até Anderson decidir fazer seus treinos em horário separado do resto da equipe.

Em 2013, o capixaba recebeu uma proposta irrecusável e assinou com o UFC. Curiosamente, dois meses após a estreia vitoriosa de Jacaré contra Chris Camozzi, Anderson sofria sua primeira derrota para Chris Weidman. Resultado que voltaria a se repetir cinco meses depois, desta vez em decorrência daquela grave fratura, que o tiraria de combate por mais de um ano.

A primeira crise

Ronaldo subia no ranking enquanto Anderson se recuperava até que numa coletiva para a imprensa um jornalista perguntou se Jacaré aceitaria lutar com o parceiro caso um dia chegasse ao topo do ranking. Cansado de desconversar e passar panos quentes no assunto, Jacaré decidiu responder com sinceridade dizendo que dependeria de Anderson e da equipe, mas que por ele não haveria problemas, pois vinha do judô, um esporte no qual era normal lutar com parceiros de treino. A declaração não foi bem digerida na X-Gym, e numa reunião dos líderes chegou a ser cogitada a expulsão de Jacaré. Quem acabou interferindo foi o próprio Anderson que, no dia seguinte, se fechou numa sala sozinho com o amigo. Foi uma conversa longa e tensa, que acabou num abraço emocionado. No fim, a paz voltou a reinar. Pelo menos até 2016.

Entre setembro de 2013 e abril de 2015, Jacaré enfileirou quatro oponentes e chegou a sonhada 2ª posição do ranking. Tudo levava a crer que uma vitória sobre Yoel Romero lhe garantiria uma disputa de cinturão. Mas uma polêmica derrota para o cubano, 3º do ranking, adiou pela primeira vez seu sonho.

O Fantasma de Spider

Foi aí que entrou em cena pela primeira vez, em fevereiro de 2016, o fantasma de Spider. Um ano depois de ser flagrado por doping na luta contra Nick Diaz, Anderson voltou lutando com Michael Bisping. A vitória polêmica do inglês sobre o maior peso-médio da história acabou lhe catapultando para um title-shot com o então campeão, Luke Rockhold. Na realidade, Rockhold faria a revanche com Weidman, que se contundiu, e como Jacaré havia acabado de vencer Belfort, há poucas semanas, Bisping recebeu a chance de ouro, conseguindo a principal vitória de sua carreira. Uma zebra histórica que acabou estacionando a divisão por quase um ano.

Por conta da rivalidade que tinha com o aposentado Dan Henderson, Bisping conseguiu trazê-lo para uma disputa de cinturão, que fazia sentido para os fãs norte-americanos, que consumiram avidamente a rivalidade entre Bisping e Henderson quando ambos foram treinadores do TUF em 2009.

A partir deste momento a ansiedade, para não perder mais nenhuma chance de lutar pelo título, levou Jacaré a tomar atitudes equivocadas. Como aceitar lutar com Robert Whittaker após uma ruptura do músculo peitoral. Sem força para agarrar, obviamente Jacaré não conseguiu impor seu jogo e foi nocauteado.

Após a derrota, Jacaré decidiu que era hora de deixar a X-Gym e iniciar uma nova etapa, se mudando com a família para a Flórida e passando a treinar na pequena equipe Fusion X-Cell. Entre o complicado pós-operatório e a mudança, Ronaldo ficou quase um ano longe do octógono, até retornar com um belo nocaute no 1º round sobre Derek Brunson e mais uma vez voltar a se aproximar do título.

Mas neste momento Anderson volta a cena para enfrentar o então 6º do ranking, Kelvin Gastelum. Em caso de vitória, obviamente, furaria a fila para o cinturão. Mas Spider foi flagrado num exame antidoping e suspenso no dia 10 de novembro de 2017. Conseguiu provar contaminação cruzada e acabou recebendo somente um ano de punição.

Curiosamente, quem acabou lutando com Gastelum foi Jacaré (2º). Lutando em casa, no Rio, o faixa-preta sabia que bastava uma vitória para conquistar sua sonhada chance de fazer a revanche com Whittaker valendo o cinturão. O brasileiro era favorito absoluto, mas, numa das piores atuações de sua carreira, acabou cansando e perdeu em decisão apertada, deixando mais uma vez a chance escapar pelos dedos. A esta altura, Gastelum pulou para 4º do ranking e foi imediatamente confirmado na luta principal do UFC 234, lutando com Whittaker pelo título.

Mas depois de dar a volta por cima tantas vezes, Jacaré, agora 3º do ranking, sabia que não era hora de esmorecer e aceitou uma luta contra Chris Weidman em sua cidade natal. Chegou como zebra e acabou nocauteando o homem que venceu Anderson Silva duas vezes em pleno Madison Square Garden, saindo da luta certo de que finalmente havia garantido sua vaga contra o vencedor de Whittaker e Gastelum. “Eu nunca perdi uma revanche na vida. Este cinturão será meu”. Chegou a declarar o brasileiro na coletiva de imprensa. Mas algumas semana depois da luta, eis que Dana White confirma Anderson Silva e Israel Adesanya, para o UFC 234, garantindo o próximo title-shot ao vencedor e levando a decepção de Jacaré, o que deu origem a este texto.

Relembrar todos os detalhes desta novela de 10 anos nos ajuda a entender que nesta história não há vilões. Na verdade, existem três pontos de vista. E, analisando um a um, todos são aceitáveis. Dá pra entender perfeitamente o desapontamento de Jacaré por ainda não ter tido a chance de lutar pelo cinturão após tantos anos de batalha, vencendo os maiores nomes da divisão e ainda respeitando a hierarquia da equipe. Assim como é perfeitamente aceitável sua decepção nos casos de furada de fila, quando o mérito esportivo é relegado ao segundo plano. Mas há de se reconhecer também que, infelizmente, nos únicos momentos nos quais a vitória significaria a disputa de cinturão (contra Whittaker e Gastelum), Ronaldo perdeu. De qualquer maneira, a marca de sua carreira continua sendo a capacidade de dar a volta por cima. E o fato é que Jacaré continua a uma vitória da disputa de cinturão.

E o que falar de Anderson Silva, o principal responsável pela virada do esporte no Brasil e, ainda hoje, um dos atletas mais populares do mundo. Depois de tudo o que fez e representou para o esporte, como negar a ele e seus fãs o direito de ver este grande gênio em ação, terminando a carreira tentando reaver o cinturão que foi seu por seis anos.

Por último o UFC. Num momento em que grandes ídolos representam receita, como abrir mão de um dos maiores da história do evento? Um lutador que, mesmo próximo dos 44 anos de idade, é capaz de alavancar as vendas de pay-per-view e ajudar o UFC 234 a esgotar todos os ingressos em poucas horas? Precisamos entender que o MMA é um esporte diferente de todos os outros e que em seus 25 anos de existência continua seu processo evolutivo com a difícil tarefa de equilibrar seu lado show com o mérito esportivo.