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Fisiologicamente, homens são mais rápidos e mais fortes do que as mulheres. A explicação é antropológica: quando já não éramos mais macacos, cabia aos sujeitos do sexo masculino correr atrás da caça e possivelmente lutar com ela ou com outros hominídeos para levar alimento para sua família.
Nos tempos de hoje, uma mulher tem cerca de 70% da força de um homem do mesmo tamanho. Portanto, se uma lutadora de MMA treinar com um colega homem, ela pode chegar mais preparada para enfrentar sua oponente no combate, certo?
Errado. Pelo menos para Gilliard Alfredo Fagundes, ou, como é mais conhecido, Mestre Paraná. Foi desafiando esse conceito, de que mulheres desenvolvem mais sua força e velocidade em treinamentos com homens, que ele criou sua equipe feminina, a PRVT Girls. Dela já saíram excelentes lutadoras – a campeã mundial das peso-palha Jessica Andrade, que defende seu título no UFC China neste fim de semana, é o expoente máximo.
Jessica é, aliás, a pessoa que inspirou Paraná a criar a PRVT Girls. Filho de uma doméstica e um pedreiro, ele trabalhava na mesma profissão do pai quando decidiu que não era aquela vida que queria. Aos 13 anos, como era fã de filmes de luta, resolveu começou a treinar capoeira. Começou a dar aulas antes dos 17, mais tarde migrou para o MMA e sempre gostou de instigar seus alunos a lutar.
“Um pouco antes de 2003, tive uma aluna que colocava para lutar”, ele relembra, da China, onde já está para o combate de sua pupila contra a chinesa Weili Zhang. “Essa aluna trouxe outra para a academia, que também lutou. Mas, quando a Jessica apareceu na equipe e, depois de um tempo, entrou para o UFC, decidi montar mesmo um time feminino para ela não ter que lutar com homens.”
Mestre Paraná acredita que, ao treinar com um homem, uma atleta acaba não dando tudo de si porque, se o parceiro de treino for devolver na mesma moeda, ela pode se machucar. Em 2014, por exemplo, a peso-galo venezuelana Julianna Peña sofreu uma lesão muito séria no joelho que a obrigou a passar por uma cirurgia e a ficar mais de um ano sem lutar – porque estava treinando com um homem.
“De fato, essa tese contraria todos os conceitos dos treinadores até então”, concorda Gilliard Paraná. “Mas hoje muitos treinadores já pensam como eu por ver a maneira como eu faço os treinos das meninas. Pensei que era uma coisa óbvia, porque uma menina nunca vai dar tudo dela treinando com um homem, por mais que sejam do mesmo peso, porque o homem sempre vai ter mais força”, ele explica.
“A menina não vai dar um soco com toda a força dela porque, se o cara for dar um soco com toda a força dele, machuca. Então ela nunca vai fazer isso por medo do que vai voltar. Percebi que o perigo de se machucar era grande. E mulher treinando com mulher é uma competição diária. Todas podem dar tudo nos treinos e ter um termômetro diário de como estão”, ele continua. “Provei que minha tese, como um pioneiro desse tipo de treinamento, é eficaz.”
A PRVT Girls conta hoje com cerca de 30 lutadoras – 20 delas profissionais. “Uma foi chamando a outra, foi dando certo e a gente foi virando referência. Hoje temos o maior e melhor time feminino que treina junto. Tem equipe até que tem mais meninas nos Estados Unidos, mas elas não treinam juntas, então para mim não é equipe. Nós somos o maior e melhor time que tem resultados no mundo.”
A linha de frente da PRVT Girls é composta, além de Jessica Andrade, por Priscila Cachoeira, a Pedrita, também atleta do UFC; Karol Rosa, que estreia no evento da China; Jéssica Delboni, que atua pelo Invicta FC; e Maria Oliveira, que lutou o último Dana White’s Contender Series Brasil, no ano passado.
Nesses seis anos de equipe feminina, Gilliard Paraná também coleciona histórias de superação de suas pupilas. A começar pela própria Bate-Estaca. “Encontrei a Jessica no interior [do Paraná] trabalhando num pesque-pague, ganhando 300, 400 reais por mês e tendo que andar 4,5 quilômetros para treinar”, conta.
Outra atleta com um passado difícil é Maria Oliveira, “filha de mãe solteira com esquizofrenia”, conta o head coach. “Ela morava na Baixada Fluminense, com muita dificuldade. Veio para cá e treinou na equipe desde o amador até se tornar profissional. Hoje tem 10 vitórias e 4 derrotas.”
Também é famoso o passado de Priscila Pedrita. “Ela já se envolveu com droga pesada, dormiu na rua vários dias e hoje é atleta do maior evento do mundo”, orgulha-se, enquanto se lembra também de Jéssica Delboni: “Tenho uma história muito curiosa dela, que hoje está no Invicta. Faltava seis meses para terminar a faculdade de veterinária e ela não quis esperar concluir quando me conheceu: quis vir treinar comigo imediatamente. Um ano depois eu estava assinando o contrato dela com o maior evento feminino do mundo.” Mestre Paraná dá destaque ainda para sua aluna Jamila Sandora. “Ela, que é musa do Vasco e tem 300 mil seguidores nas redes sociais, está 5 a 0 no seu cartel. Em breve deve estar assinando com um evento muito grande”, acredita.
Para o líder do time, manter um clima de amizade é essencial para o sucesso da PRVT Girls. “Tento ao máximo pregar um clima de família”, explica. “Elas são muito unidas, algumas têm até a tatuagem da equipe no corpo. Ensino a elas que, quando chegarem no topo, devem ajudar outras que estão começando a carreira. A Jessica Andrade é um exemplo disso: sempre está ajudando as mais novas. Esse é o legado que eu quero deixar, de uma equipe constituída dentro de uma forma de pensar como família. Se não for para ser assim, para mim não é legal. Um por todos e todos por um. A gente até usa uma frase que usa muito aqui: ‘PRVT, família pra quem sabe ser’.”
Paraná diz que muitas vezes nem ele acredita que a PRVT Girls alcançou esse patamar em que está hoje. “O time chegou a níveis inacreditáveis”, conta. “Eu sempre estava na contramão do que os outros achavam certo. Imagina, criar um time feminino em um esporte tão machista? Ninguém podia acreditar que daria certo. Temos o cinturão peso-palha com a Jessica e o topo de tudo isso seria a gente conquistar outros cinturões. Mas, se nada disso acontecer, já me dou por satisfeito. Já cheguei muito mais longe do que muitos poderiam apostar. E ter conseguido mudar a vida de muita gente, principalmente das meninas, poder ajudar elas a conquistar sonhos e mudar a vida delas e de suas famílias, isso é que me deixa feliz.”