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Por Carol de Lazzer, em depoimento a Cláudia de Castro Lima
Em 2009, eu andava desapontada. Estava na seleção brasileira de luta olímpica, tinha disputado os Jogos Panamericanos dois anos antes, mas não tinha classificado para os Jogos Olímpicos de Pequim em 2008. E eu fico supertriste de ver o pessoal criticando os atletas porque só quem vive de esporte sabe a realidade: os patrocínios só surgem no ano anterior aos jogos. E, na entressafra, é muito sofrido. O Brasil não valoriza nem um pouco os atletas.
Estava então nessa entressafra quando surgiu o convite para eu ir para os Emirados Árabes dar aulas de jiu-jítsu para meninas nas escolas de Abu Dhabi. Pensei até quando eu ficaria naquele sonho olímpico vendo as oportunidades passarem e resolvi agarrar essa e ir embora para os Emirados.
Eu treinava jiu-jítsu desde 2001. Cursava educação física e comecei a convite de um colega de faculdade, o Rodrigo Dias, que foi meu primeiro professor. Treinei com ele e com a Patricia Furlanetto, que era a mais graduada no esporte no Rio Grande do Sul e tinha o sonho de criar um time feminino. Ela alimentou o sonho de que eu seria campeã mundial. Depois mudei para Porto Alegre e meu sonho era ser campeã mundial na faixa azul e parar. As coisas não aconteceram dessa maneira, graças a Deus.
Bati na trave algumas vezes como faixa azul, fiquei em terceiro no Mundial. Na faixa roxa, fiquei em segundo, numa final com uma faixa preta. Em 2006 eu já era faixa marrom e fui finalmente campeã mundial. Foi muito melhor do que eu tinha sonhado para mim. Nessa época, eu já era da seleção brasileira de wrestling, e conciliava a luta olímpica com a carreira de jiu-jítsu, mas ele já tinha virado secundário.
Em 2008, teve um evento na Jordânia, o Capital Challenge. Era a primeira vez que mulheres lutariam no Oriente Médio. Um pouco antes, houve aquela primeira leva de professores brasileiros sendo convocados para dar aulas em Abu Dhabi. Era um projeto do sheik Tahnoon Bin Zayed [ele conheceu o jiu-jítsu nos anos 1990, quando estudava nos Estados Unidos. Fez aulas, se apaixonou e o levou para seu país – onde, hoje, ele é ensinado nas escolas e obrigatório nas Forças Armadas e na polícia]. Eu tinha sido convidada a ir, mas eles acabaram oferecendo as vagas para as esposas dos professores brasileiros que já estavam lá e que lutavam também.
Resolvi então atacar: como estava um pouco afastada do jiu-jítsu, fui competir na Jordânia para colocar de novo meu nome no bolo, ser conhecida naquele meio e ir para Abu Dhabi também. Foi o que aconteceu. Acabei perdendo a final pra Kyra Gracie, mas já fiz os contatos lá e no ano seguinte me fizeram o convite para ir morar em Abu Dhabi. Cheguei com uma turma de mais ou menos 60 professores, entre mulheres e homens. Eu e a Danielle Piermatei fomos as primeiras faixas-pretas a chegarem lá, em julho de 2009.
Fui pra fazer parte do School-Jitsu, para trabalhar nas escolas, mas chegando lá eles resolveram que iam colocar nas bases militares femininas. Comecei com a Cassuza Fornari treinando desde recrutas até oficiais e começamos também a montar uma equipe de treino de competição. Saíram de lá as primeiras medalhistas adultas do projeto.
Hoje Abu Dhabi está muito diferente de quando chegamos. Em 2009 as coisas eram bem mais conservadoras, mulheres não corriam de shorts na rua. Você parecia uma alienígena, quando não era parada pela polícia. Hoje tem menina de top, está muito mais liberal. Mas a vida é boa demais, é seguro, as ruas são extremamente limpas. Sofri um pouco por causa do calor, mas lá a gente sente menos do que o verão no Rio de Janeiro, por exemplo, onde o tatame vira uma piscina, é quase um treino aquático, faz jiu-jítsu e sauna juntos. Em Abu Dhabi não sentimos quase porque tudo tem muita infraestrutura, ar-condicionado – mas eu sentia falta do ar puro, gosto muito de atividade na rua.
É até difícil dizer quantos brasileiros estão lá hoje, não sei precisar o número. No início, o projeto englobava alguns dos sete emirados. Hoje expandiu. Existe jiu-jítsu em quase todos, tanto em bases militares como escolas. Ele só é obrigatório para os militares: para subir em suas carreiras eles precisam fazer. Nas escolas é opcional, mas a adesão é cada vez maior. Tem time nacional e é bonito ver que os adolescentes já têm uma postura de jiu-jítsu mesmo. Muitos deles falam português.
Lá, homens não dão aulas para mulheres e vice-versa. E as mulheres mudaram muito depois de começarem a treinar. Vi isso nitidamente nas que eu treinava. Na base militar, algumas já eram mães e era muito legal ver a transformação delas. A Shamsa Hassan, por exemplo, foi a primeira menina campeã mundial na faixa branca, era muito tímida, andava até meio encolhida, e a gente viu que ela começou a ter um orgulho no olhar. Mesmo depois que eu não era mais professora dela, acompanhei seu desenvolvimento, quando ela foi competir fora do país.
Até 2012, as mulheres não podiam lutar fora do país porque elas não podiam usar o hijab, aquele véu muçulmano, nas competições do IBJJF (Federação Internacional de Brazilian Jiu-Jítsu). Começamos uma campanha para que fosse modificada essa regra e, assim, as meninas muçulmanas serem incluídas, porque elas têm que cobrir o cabelo por uma questão religiosa e ficavam de fora do circuito por causa dessa proibição. A regra foi modificada e fico muito feliz de ter contribuído para essa mudança. Já recebi vários testemunhos de meninas de vários lugares, ao redor do mundo, dos Estados Unidos, Reino Unido, dizendo que elas já se sentem campeãs com essa conquista. Isso não tem preço. Era esse o grande objetivo que eu tinha: fazer, de alguma maneira, a diferença.
Fui a treinadora da primeira seleção feminina dos Emirados de jiu-jítsu em 2012. Nessa delegação de seis meninas, fizemos cinco medalhas, uma era da Shamsa Hassan. Também fui a primeira faixa-preta morando nos Emirados a conseguir ser campeã do World Pro em Abu Dhabi em 2013. Depois de um tempo sabático sem competir, retornei aos tatames com o objetivo de ser campeã mundial – e consegui.
Claro que, quando mudamos para Abu Dhabi, o fator econômico e financeiro tem um grande peso. Todo mundo quer uma vida melhor. Mas, nas primeiras levas de professores lá, a gente tinha um objetivo maior: mudar uma nação. Ensinar o jiu-jítsu, aquilo que a gente mais admirava, e o dever foi muito bem cumprido pelos brasileiros que já passaram por lá e os que ainda estão por lá. Isso mudou a vida de muitas famílias brasileiras, mas também entregamos para eles uma herança que só vai a acrescentar para o futuro do país.
Como tudo tem início, meio e fim, meu ciclo em Abu Dhabi acabou se encerrando no ano passado. Mudei minha atividade lá e optei em ser mãe. Tenho dois filhos que nasceram lá, e o trabalho que exercia ficou mais difícil até que em 2018 fiz a opção de retornar. Queria que meus filhos criassem um laço maior com minha família, eles vinham pouco para cá e queria essa vivência familiar para eles, que é uma das minhas melhores memórias de infância. Mas tenho novos voos programados, que já estão prestes a acontecer. Em breve vou poder anunciar os desafios que estão se desenhando em minha frente.
Minha ligação com Emirados Árabes vai ser para sempre, até porque meus filhos veem lá como a casa deles.