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Entrevistas

Por que as brasileiras estão detonando no UFC?

Foi essa a pergunta que fizemos a quatro jornalistas especialistas em MMA

Há quatro categorias femininas no UFC. Três delas têm brasileiras como campeãs. Os títulos da categoria peso-galo e peso-pena estão nas mãos de Amanda Nunes. O cinturão dos palhas habita, há duas semanas, a casa de Jéssica Andrade. Só a cinta dos moscas tem um endereço internacional: é de Valentina Shevchenko, natural do Quirguistão.

Qual é o segredo das atletas brasileiras? Por que estamos detonando tanto no UFC? Foi isso que perguntei a quatro amigas jornalistas. Veja aqui o que elas pensam sobre o assunto.

Brasil

Fernanda Prates, repórter do MMA Junkie

“Sempre que me perguntam o ‘segredo’ do sucesso de um lutador, tenho dificuldade em responder. Afinal, não existe muito um. Ser um bom atleta de MMA envolve os mesmos elementos básicos que ser um bom atleta de qualquer outra coisa: dedicação, treino, estratégia e, claro, um pouco de talento sempre ajuda.

Mas, também como em outros esportes, há algo que separa o lutador bom do lutador extraordinário. E embora fatores naturais – como os três quilômetros de braços e pernas do Jon Jones, ou a força sobrenatural da Jessica Andrade  – entrem na equação, pra mim esse fator não é físico. Pra mim, o que faz um lutador extraordinário é a cabeça.

Deixemos claro: qualquer pessoa que se dispõe a desafiar os limites do corpo por meses, apenas para submetê-lo a todo tipo de dano dentro de uma jaula iluminada, tem uma cabeça diferente. Ao contrário do que os haters dizem, o MMA não é um esporte de trogloditas. Não: ele envolve uma frieza, uma inteligência emocional e um tipo de insight sobre a natureza humana que fazem dele bastante cerebral.

“O cinturão mostra que uma mulher pode o que quiser”

Mas algo comum à maioria dos lutadores extraordinários não é que eles sempre fazem um camp perfeito, chegam em condições perfeitas e fazem lutas perfeitas. O lutador extraordinário, pelo contrário, é aquele que entende que nunca vai existir o contexto perfeito. Ele é aquele que não procura erradicar a adversidade, mas sim abraçá-la. Pergunte a qualquer lutador que já esteve naquelas guerras memoráveis de três rounds, em que ele e o oponente se levaram ao limite, sobre o que manteve ele de pé até o fim. Claro, um bom condicionamento cardiorrespiratório não faz mal, mas aposto que ele não vai dizer que não foi o corpo; foi a cabeça.

Cave um pouco mais fundo e aposto que você também vai ouvir que poucas coisas preparam mais um ser humano pra viver situações mentalmente duras dentro do octógono do que as coisas que ele viveu fora dele.

E é aí, pra mim, que entra o tal ‘segredo’ das mulheres no UFC. Ser mulher em qualquer esporte é complicado. Ser mulher no mundo, admitamos, é complicado. Mas, para muitas dessas lutadoras, poder seguir a carreira que elas escolheram envolveu ouvir muito não, tomar muita porta na cara, lidar com muito questionamento e falta de apoio – da família, dos amigos, às vezes até de colegas de profissão.

Amanda Nunes faz história

Pode parecer estranho pensar nisso hoje, mas lembremos que, até o fenômeno Ronda Rousey, sequer se cogitava abrir divisões para mulheres no UFC. O respeito pelo MMA feminino é uma conquista relativamente recente – e que, uma olhada em qualquer seção de comentários em matérias sobre atletas mulheres vai dizer, ainda não desceu pela garganta de muita gente.

Aí você olha a a trajetória das duas atuais campeãs do UFC, Amanda Nunes e Jessica Andrade. As duas vieram do interior – Pojuca e Umuarama, respectivamente. As duas escolheram caminhos que não condiziam com suas circunstâncias. As duas abandonaram o conforto de casa, sem nenhuma garantia de nada, vivendo com pouco e se doando muito, até serem reconhecidas como as atletas extraordinárias que são hoje. Nada do que elas têm foi dado; tudo foi conquistado.

Depois do que elas passaram simplesmente para conseguir entrar naquele octógono, você acha que elas vão desistir fácil lá dentro?”

Bebel Guimarães, apresentadora do MMA Alterosa, do SBT de Minas

“O sucesso das mulheres no UFC, além de, obviamente, atestar competência, disciplina e treino, revela um caráter social também. Em todas as áreas predominantemente masculinas, quando vemos atuação de mulheres, via de regra, é com destaque.

Acredito que seja um esforço ainda maior para provar que o gênero é capaz de fazer qualquer coisa que os homens fazem também. Com isso, acredito que a motivação também seja maior.

Porque, além de se capacitar para atuar da melhor maneira possível na profissão (o que homens também têm que fazer), a mulher ainda precisa mostrar mais ainda que é capaz. E essa motivação de gênero (sem entrar em preconceitos), na minha visão, é uma das condicionantes para o destaque das meninas.”

LAS VEGAS, NV - MARCH 03:   Cris Cyborg of Brazil celebrates after her TKO victory over Yana Kunitskaya of Russia in their women's featherweight bout during the UFC 222 event inside T-Mobile Arena on March 3, 2018 in Las Vegas, Nevada. (Photo by Brandon M

LAS VEGAS, NV - MARCH 03: Cris Cyborg of Brazil celebrates after her TKO victory over Yana Kunitskaya of Russia in their women's featherweight bout during the UFC 222 event inside T-Mobile Arena on March 3, 2018 in Las Vegas, Nevada. (Photo by Brandon Magnus)


Evelyn Rodrigues, correspondente internacional do Canal Combate e do SporTV

“As lutadoras brasileiras são muito guerreiras. Muito antes de o MMA ser popular no nosso país elas já vinham desbravando o esporte, buscando seu espaço no meio dos homens, mesmo sem um treino adequado ou sem um processo de perda de peso desenhado pro metabolismo feminino. Basta lembrar que a Cris Cyborg, por exemplo, iniciou a carreira treinando na Chute Boxe ao lado de caras como Anderson Silva, Maurício Shogun, Wanderlei Silva.

Como ela, muitas meninas iniciaram no MMA aprendendo com mestres e lutadores que ajudaram a criar e a desenvolver o esporte. E aí elas foram evoluindo na base do esforço, da resiliência e do talento. Hoje temos quatro categorias femininas no UFC, mas desde o início as mulheres brasileiras sempre estiveram no topo dessas divisões.

Veja o nocaute da campeã Jéssica Andrade no UFC 237

Amanda Nunes foi a primeira brasileira a ser contratada pelo UFC, Jessica Bate-Estaca foi a primeira brasileira a lutar no octógono – e olha onde elas estão hoje. Claro que o número de categorias femininas ainda é pequeno se compararmos com o tanto de categorias masculinas, mas isso já mostra o quanto essas meninas evoluíram para chegar onde chegaram.

Ainda é muito difícil para uma mulher viver apenas do esporte (não só no Brasil, mas no mundo), mas a estrutura e o apoio que elas recebem atualmente é muito maior. O próprio UFC tem em seu Instituto de Performance, em Las Vegas, um corpo de especialistas que têm cada vez mais ajudado atletas a evoluírem com base na ciência. Acho que, com isso, as mulheres vão continuar crescendo e se destacando cada vez mais.

O Brasil não é dono de três dos quatro cinturões femininos do UFC por acaso. Essas meninas trabalham muito duro para estarem onde estão.”

Jessica Andrade
Ana Hissa, repórter do Combate e do SporTV, apresentadora e comentarista

“Durante 40 anos, o esporte feminino de forma geral não era reconhecido por lei no Brasil. Houve então um processo muito demorado até que as meninas que lutam conseguissem entrar num patamar em que pudessem pleitear por algum espaço, principalmente no UFC, o maior evento de MMA do mundo.

Quando eu comecei a cobrir o esporte há 10 anos, era um drama. As pioneiras, como Michelle Tavares, Ana Maria Índia, Carina Damm e Vanessa Poeto, por exemplo, sofriam. Era muito difícil conseguir uma luta feminina, sempre caía. Elas tiveram que passar por um processo de aceitação.

Aos poucos, principalmente com a abertura do UFC para as lutas femininas, abriu-se espaço para o MMA. E você vê as meninas sendo extremamente técnicas. Esse boom do MMA feminino aqui no Brasil é, portanto, uma coisa que vem acontecendo com a mudança de cultura mesmo.

Amanda Nunes, a maior lutadora de todos os tempos

É uma coisa natural: quanto mais meninas disputando, mais o patamar se eleva. Especialmente depois que essa porta foi aberta pelo UFC, com várias categorias sendo criadas, e com a própria criação do Invicta. Antes era muito difícil arrumar, principalmente no Brasil, uma luta feminina. Diversas vezes vi meninas chorando porque treinavam, treinavam treinavam, acontecia alguma coisa com a adversária e não conseguiam substituta.

Hoje fui na pesagem do Shooto e falei com uma menina da nova geração. Ela nasceu em 1998 e estava me falando que começou na academia porque o pai indicou como exercício e ela viu que podia fazer daquilo uma profissão. Quem ia olhar a ideia de ter o MMA como profissão há algum tempo? Hoje é uma coisa consolidada: pegue como exemplo o UFC, com 90 mulheres e quatro categorias. É claro que tem muito chão pela frente, mas o nível técnico acaba aumentando porque isso fomenta o esporte feminino.”