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Quem é a médica faixa-preta que usa tecnologia de ponta para tratar as atletas da PRVT

Renata Castro é campeã panamericana de kickboxing e tem pós-doutorado em Harvard em cardiologia do esporte, uma especialidade que ainda nem existe no Brasil

Criada pelo mestre Gilliard Paraná, uma equipe incomum como a PRVT Girls, formada apenas por atletas mulheres de MMA, não poderia ter uma médica trivial. Pois a doutora Renata Castro não é uma profissional como outra qualquer.

A médica tem duas especializações: cardiologia e medicina do esporte. Além disso, fez pós-doutorado na disputadíssima e prestigiada Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, em cardiologia do esporte, especialidade que nem existe no Brasil ainda. Mas não é só: ela é faixa-preta de kickboxing, esporte pelo qual já conquistou títulos como o de campeã brasileira e panamericana.

Se para ser um bom médico é preciso ter vivido as dores de seus pacientes, Renata é perfeita para o que faz. Filha de médico, ela sempre adorou ciência. Quando estudava medicina na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, interessou-se de cara pelo laboratório de fisiologia do exercício. Ali definiu suas duas especialidades.

Mas o que, afinal, faz um médico do esporte? “Ele é o médico do atleta, o profissional que conhece tudo daquele esportista”, afirma Renata. “É ele que o atleta vai procurar quando tem uma gripe, quando tem uma lesão ou quando vai se preparar para uma competição. É o profissional de saúde que vai conduzir todas as questões clínicas e fisiológicas do esportista, trabalhando na prevenção e no tratamento.”

Mas o médico do esporte não cuida apenas de atletas profissionais – ele cuida também de pessoas comuns como eu ou você. “A profissão está muito relacionada ao estilo de vida saudável. No atleta, o acompanhamento visa a performance em alto nível e o tratamento de lesões, quando elas acontecem. Mas, em relação ao indivíduo que não é atleta, tenha ele doenças ou não, o médico do esporte vai ser a pessoa que vai ajudar a usar o exercício para melhora da sua qualidade de vida.” É um médico do esporte que precisamos procurar quando decidimos melhorar nossa rotina de saúde. Ele nos avalia e nos libera para determinadas atividades físicas, elabora conosco a melhor opção de treinamento e acompanha esse treino com avaliações periódicas para chegarmos ao nosso objetivo, seja ele perder peso, controlar o diabetes ou deixar de ser sedentário. “Eu diria que todo mundo tem indicação de passar por um médico do esporte”, afirma Renata.

A médica trabalha na Care Club, uma clínica localizada em Ipanema, no Rio de Janeiro, onde é responsável pela área de cardiologia do exercício, performance e avaliação fisiológica. “Já tenho mais de 20 anos de formada em medicina e, ao longo desse tempo como pesquisadora, me incomodava demais a questão de que os testes de exercício que a gente usa para avaliação de indivíduo, atleta ou não, serem basicamente esteira e bicicleta”, ela conta. “Para o lutador não interessa saber se vai chegar a 17 ou 20 km/h na esteira. Isso não vai ser determinante para a luta, para o esporte a que ele se dedica.”

Aproveitando sua experiência na ciência e a de seu mestre de kickboxing, André Fernandes, na prática esportiva, os dois foram desenvolvendo testes específicos para avaliação de atletas de luta em pé, como kickboxing, boxe, taekwondo e muay thai. “Meu trabalho com a PRVT começa com essa avaliação fisiológica, um grupo de testes bem específicos, como de tempo de reação, capacidade aeróbica, potência anaeróbica e potência de luta, entre vários outros detalhes que analisamos. Não vi esses testes nem em Xangai, para onde fui com a Jéssica Andrade e com a Karol Rosa para o UFC China”, conta a médica, ressaltando que Karol, que lesionou o joelho e está fora do UFC Singapura, no dia 26 de outubro, está sendo atendida pelo seu colega de Care Club, o ortopedista Christiano Cinelli, que prescreveu repouso e fisioterapia.

Depois dos testes feitos, a equipe estuda os resultados para traçar, com o preparador físico e o mestre Paraná, o planejamento de treinamento diário que o atleta tem até sua luta. “Além disso, faço avaliação clínica, para evitar ou tratar questões que acontecem com qualquer pessoa, como anemias, infecções. E também as acompanhamos para evitar o overtraining, que é uma grande questão para o atleta.”

Foram também seus anos de prática médica que levaram Renata a fazer um pós-doutorado em Harvard. “No Brasil, ainda não existe a especialidade cardiologia do esporte, mas fora do país ela já começa a acontecer”, explica a cientista. Segundo ela, a prática do esporte de alto rendimento e seu treinamento geram alterações no coração que, se avaliadas por um médico que não está acostumado com o atleta, podem ser equivocadamente diagnosticadas como cardiopatias, ou doenças do coração. “Muitas vezes o médico vai dizer que a pessoa não pode nem continuar a praticar aquele esporte”, diz ela. “A cardiologia do esporte surge a partir da necessidade de acompanhamento do atleta, das alterações, que chamamos de adaptações cardíacas, que acontecem no coração deles.”

A cardiologia do esporte serve também para orientar a prática de atividade física para pessoas que têm doença no coração e não são atletas, mas que precisam de exercício até como tratamento – é a chamada reabilitação cardíaca. Renata resume: “Não avaliamos só atletas cardiopatas, como também atletas que não têm problema de coração e cardiopatas que não são atletas”.

Sobre a sua vida de atleta, Renata conta que começou sem grandes pretensões. Quando terminou a faculdade de medicina e já era especialista em cardiologia e medicina do esporte, em 2005, resolveu praticar muay thai. Depois de um tempo de treino, seu mestre, que já era André Fernandes, começou a dar aula de kickboxing. Como ela gostava do treino dele, decidiu mudar de esporte.

“Inicialmente não era minha intenção competir. Treinei bastante sem pensar nisso, até que chegou num ponto em que as pessoas da academia estavam competindo e o André, que achou que eu estava indo bem no esporte, me convenceu a competir também”, ela relembra. “Sempre fui muito avessa até porque minha prioridade era minha vida como médica. E o kickboxing, por ser um esporte de contato, traz risco de lesão.”

Mas, convencida pelo mestre, em 2012 ela começou a participar de campeonatos. Primeiro foi o municipal, no Rio de Janeiro. Depois o estadual. Como foi ganhando tudo, chegou à Copa Brasil e ao brasileiro. “Competi em duas categorias, point fight e light contact. E fui campeã brasileira nas duas.” Surgiu então a oportunidade de representar o país em 2014 no Campeonato Panamericano, na Argentina. “Também ganhei nas duas modalidades. Esses foram meus títulos mais expressivos.”

Sua vida competitiva terminou em 2016, quando teve que optar em continuar no esporte ou fazer seu pós-doc. “Resolvi que ia parar de competir porque não ia ser compatível com um pós-doutorado em Harvard ao mesmo tempo.” Durante os dois anos que passou em Boston, treinou sozinha, em casa, porque não encontrou nenhum local para praticar o esporte lá. Tinha um saco de pancadas e recebia regularmente os treinos de André. “Voltei no meio de 2018 e continuo treinando, mas não pretendo voltar a competir. Já tive minha vida de atleta e minha ideia é continuar na medicina sem me arriscar mais no esporte de contato.”