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Atletas

“Ronda me transformou numa verdadeira vilã”

A paraibana Bethe Correia conta sobre a promoção de seu combate com Ronda Rousey, em agosto de 2015, e por que ela pensou em parar de lutar

“Muita gente se resguarda para esperar o momento certo de fazer as coisas. Eu sempre soube o que queria. Entrei no UFC com o foco de ser logo alguém. Não bastava para mim ser só uma lutadora qualquer de MMA. E eu sabia que, para ser alguém, eu tinha que lutar com a campeã.

Vi muito lutador que não tem o dom para provocar o adversário, que não nasceu para o trash talk, fazer isso só porque achava que era parte do show. Tem gente que não tem o perfil, mas isso não é para qualquer pessoa. Eu sempre fui muito ousada. Fui ousada também para começar a praticar MMA aos 28 anos – nunca tinha feito nenhum esporte na vida e de repente me apaixonei por esse. E eu sabia que não tinha tempo a perder. Que as coisas teriam que acontecer muito rapidamente. Não queria ser só mais uma garota que luta no UFC.

Quando venci a Jessamyn Duke [em abril de 2014], vi que era o momento perfeito para começar a provocar a Ronda Rousey. A Jessamyn tinha sido atleta da Ronda no TUF [em 2013] e ela tinha um carinho especial pela garota. Praticamente adotou a Jessamyn e ficou treinando ela depois. Na época, um dos meus técnicos, o Eric Albarracin, me contou que a Ronda dizia que ela, a Jessamyn, a Shayna Baszler e a Marina Shafir, todas do seu time no TUF, eram a Four Horsewomen [ou Quatro Cavaleiras]. Era uma brincadeira com a equipe de WWE Four Horsemen. Eu então a desafiei. Disse que já tinha destruído uma, faltavam três, porque eu derrotar todas. Falei que eu era a ‘Matadora de Cavaleiras’. Entrei nesse espírito do WWE.

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Comecei a provocar muito. Para mim, era muito natural. Teve um aniversário dela que pensei que eu tinha que tirar proveito. Liguei para um ilustrador e pedi para que fizesse um desenho da noite para o dia. Ele me desenhou batendo na Ronda. E eu postei dizendo que era meu presente de aniversário.

Até que a estratégia funcionou e ela pediu para lutar comigo. Eu não sabia que o UFC já estava fazendo seu trabalho também. Fui convidada para o UFC no Maracanãzinho, no Rio de janeiro, em março de 2015, e ainda tinha um mistério no ar. Nem eu sabia que o anúncio da nossa luta seria feito lá. Quando vi, eu estava sentada na coletiva de imprensa ao lado do Conor McGregor. Toda vez que eu falava, a Ronda tirava o fone para não ouvir a minha voz. Saiu tudo como eu imaginava naquela coletiva, até os tipos de perguntas que eu ouviria. Mesmo na hora da encarada, eu não acreditava que finalmente enfrentaria a Ronda.

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Mas então chegou aquele episódio do suicídio. Numa das provocações, eu disse que ela não precisava se preocupar porque eu daria a revanche depois de derrotá-la. Falei que ela não precisava se matar. Até esse momento, eu admirava Ronda por tudo o que ela tinha feito. Mas foi aí que eu vi uma Ronda oportunista. Ela pensou: vou me fazer de vítima e a Bethe vai ser a vilã. E ela publicou no Twitter que suicídio não era piada, que o pai estaria com ela no dia da luta.

Em nenhum momento eu falei sobre o pai dela. Eu nem sabia que o pai dela havia cometido suicídio, não fazia a menor ideia. Fiz aquela provocação porque eu sabia que a Ronda tinha o psicológico fraco. Tinha lido uma reportagem em que ela falava que, quando ficou com o bronze na Olimpíada [de 2008, como judoca], entrou em depressão. Foi por isso que eu disse aquilo, para pegar no psicológico dela. Mas ela levou para o lado do pai. E isso repercutiu muito.

Virei uma verdadeira vilã.

Deixei de ser a provocadora engraçada e passei a ser aquela que pega pesado demais. O brasileiro é muito sensível e não entende isso de provocação. Não entende o trash talk. Ela quis se fazer de boazinha para o público brasileiro, porque a luta seria aqui no Rio de Janeiro. Foi tudo jogada de marketing. E isso me prejudicou muito. Me senti péssima, mas meu foco ainda era a luta e não deixei isso me abalar.

Mas eu senti bastante na hora da pesagem. Foi quando a ficha caiu mesmo. Era uma pesagem só, um dia antes da luta. Estava desidratada para a pesagem, mais sensível. Estava na minha casa, no Brasil, levando a bandeira brasileira na mão. E entrei vaiada, enquanto a Ronda entrou aplaudida. Ali percebi que tinha algo errado.

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Poucos brasileiros entendem essa provocação. É uma questão cultural mesmo. Aqui, as coisas são levadas a sério. Americano entende melhor isso. Fazia parte do meu jogo provocar a Ronda. Se eu dissesse aquilo nos Estados Unidos, talvez as pessoas dariam risada. Mas no Brasil é totalmente diferente. E a Ronda soube aproveitar bem isso. Ela queria comover o público.

Eu tinha passado por um camp difícil. Foram quase cinco meses, um camp longo, de muita intensidade, muita pressão, muita cobrança. Via ela, milionária, com uma superestrutura de treino, enquanto eu não tinha nenhum patrocínio, nada – como, aliás, não tenho até hoje. Meus pais de vez em quando mandavam um dinheiro, uns 2 mil reais, e eu conseguia chamar um ou outro treinador. Teve briga na minha equipe, foi muita sobrecarga.

Na hora da luta, até na escolha da música de entrada eu quis provocar. Entrei com ‘Beijinho no Ombro’, da Valesca Popozuda. O público brasileiro gostou. Foi uma cartada que deu certo. Na luta em si, fui muito rápido para cima dela. Se fosse hoje, eu estudaria mais, me movimentaria mais. Não fui com muita estratégia. Fui para jogar junto.

Meu erro foi ter caído, dado aquela cambalhota. Eu nem sei por que fiz aquilo. Nunca fiz aquele movimento nem em um treino. A derrota virou até meme. Não teve como eu não rir de alguns. Mas foi bem frustrante.

A sensação quando percebi que tinha sido nocauteada foi de impotência. Não conseguia raciocinar. Me lembro que o Patrício Pitbull, que era meu córner, me falou: ‘Tenho muito orgulho de você’. Eu olhei pra ele e perguntei: ‘Orgulho de quê?’

Digo que a experiência conta pra caramba. Mas só hoje eu vejo isso. Se a luta fosse agora, eu talvez soubesse administrar melhor. Afinal, tenho 10 combates pelo UFC, e na época eu só tinha três. Mas não posso culpar a torcida do Brasil ou minha academia por minha derrota. Foi um momento. A mão dela entrou e ela venceu. Hoje talvez eu fizesse diferente.

Hoje eu vou para uma luta sabendo que posso perder. Mas, na luta com a Ronda, eu não achei que isso aconteceria. Até então, eu estava invicta, por isso só recebia elogio. A gente acaba se sentindo muito forte e poderosa nessa situação. E aqui no país as pessoas não veem uma derrota como um aprendizado. O público enxerga como um fracasso. Às vezes é melhor ganhar mal do que perder bem.

Depois da luta, fui muito acolhida pela minha família. Eles faziam de tudo para me distrair. Mas, quanto mais tempo passava, mais a minha ficha do que tinha acontecido mesmo caía. Vi muita maldade. Gente que estava me elogiando antes da luta começou a me criticar depois. Era: ‘Você é f@d@’. Virou: ‘Mereceu’. Fiquei um bom tempinho bem revoltada, acho que uns cinco meses. Não queria mais ir para a academia.

Fiquei meio com abusinho do Brasil, não vou mentir. Fiquei magoada. Quis dar um tempo daqui e fui para a AKA [American Kickboxing Academy], em San Diego, nos Estados Unidos. Foi a melhor coisa que eu fiz. Enquanto aqui todo mundo me criticava, lá fui muito festejada. Chegavam cartas e cartas de americanos para mim, com elogios, e aqui eu só recebia críticas no Instagram. Lá eles me viam de outra forma.

Depois da luta com a Ronda, enfrentei a Raquel Pennington e foi outra frustração. Perdi para a arbitragem. Os juízes deram decisão dividida. Eu não vi a minha derrota. Acho que eu quis fazer com a Raquel o que faltou com a Ronda. Deveria ter sido mais agressiva.

Tive mais tarde muitos altos e baixos. Depois da Raquel enfrentei a Jessica Eye. Venci dela, o que deu um upzinho no meu ego.

Mas pensei muitas vezes em parar. Por vários motivos. Tive muitos problemas de saúde, várias lutas caíram por causa das três cirurgias que fiz, da minha vista. Discussões na academia, rompimentos. Uma coisa puxa a outra, vai virando uma bola de neve. Senti falta de apoio. As pessoas me incentivavam a parar, muita gente, até familiares. Só que eu sempre fui extremamente teimosa, cabeça dura e faço o que eu quero. Por mais que todo mundo falasse que deu, que estava na hora de parar, a pessoa só para quando ela sente isso dentro dela.

Eu não quis parar de uma forma que achava que era errada. Se eu fizesse isso, só confirmaria tudo o que estavam falando de mim, tudo o que julgavam a meu respeito. Se eu parasse seria um fracasso. Eu sabia que não era a hora. Tinha que mostrar que todo mundo estava errado.

Tanto que nessa última luta com Sijara Eubanks, no México, foi muito difícil. Ninguém queria que eu lutasse, meu empresário, meu treinador. Fiquei lesionada, fui para o hospital, fiquei dias de cadeira de roda, mas falei: ‘Não desmarca, não’.

Arrisquei. Porque toda vez que eu arrisquei deu certo. Cheguei no México ovacionada, venci e saí triplamente ovacionada. Era um momento muito delicado na minha família, a gente tinha acabado de descobrir que minha irmã estava com câncer. Todo mundo estava abalado, sensível. Depois, minha irmã falou: ‘Ainda bem que você não me escutou, ainda bem que lutou’. Minha vitória até deu uma alegria para a minha família, num momento em que estava todo mundo pra baixo.

Tive muita raiva da Ronda por ter me feito de vilã. Mas depois a raiva foi passando porque percebi que o que aconteceu foi mais positivo do que negativo. O público fez o que fez por falta de entendimento. E eu consegui o que queria: o mundo todo me conhece, realizei meu sonho, que era lutar pelo cinturão e não passar despercebida. Estou entre as top do mundo.

Quando percebi isso tudo pensei: por que estou chateada? Tenho que estar feliz. Consegui comprar minha casa, meu carro, coisa que muita gente não consegue na vida toda. Até hoje, tudo o que eu faço as pessoas querem saber – mesmo que seja para torcer contra. Tenho audiência.

Fico grata à Ronda por ter aceitado isso. E até ela ter me feito de vilã ajudou a me promover mais. As pessoas querem me ver.

Ter perdido para ela não era o que eu planejava, claro. Eu queria ter ganhado o cinturão, ter sido campeã. Mas aconteceu de outra forma. E meu sonho foi realizado de um jeito diferente. Mas foi realizado.

Nunca fui tão amada quanto no México. Gostaria que aqui eu fosse vista assim. Mas vou continuar falando, como sempre fiz. Gostaria que o brasileiro estivesse ao meu lado, mas enquanto está me dando audiência está bom.

Ninguém conseguiu fazer o que faço. Não falo isso por arrogância, mas é que nenhuma outra lutadora consegue fazer esse tipo de coisa. Essa história com a Ronda é uma rivalidade feminina que ninguém vai conseguir repetir.

Agora estou feliz. Satisfeita. Vamos ver o que me aguarda na próxima luta. Mas, pelo aprendizado que eu tive, vou ser eu, fazer só o que eu acredito. Já tenho uma boa experiência para poder tomar minhas decisões.”

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