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Por Demian Maia
Em depoimento a Cláudia de Castro Lima
Meu avô materno me levava para pescar com varinha de bambu quando eu era criança. Ele foi uma figura masculina muito forte na vida e, por causa dele, comecei a me interessar por pesca. Como tudo o que me interesso, fico obcecado. Tinha revista de pesca, ficava lendo. Mas passei muitos anos sem ir atrás disso porque arrumei outra obsessão: a luta. Eu achava que tudo que fizesse além disso tiraria meu foco.
Entendi faz pouco tempo que você pode relaxar, fazer outros esportes, ter outros interesses. Desde que você saiba planejar seu tempo, isso não vai impedir você de ser bom no que faz. Li quando era mais novo o livro A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, em que o autor é um professor universitário que vai para o Japão e tem aulas de arco com um mestre zen. Ele fala que aprendeu que, quando vai atirar, não se pode querer acertar o alvo.
Esse é o paradoxo zen. Você não pode querer seu objetivo. O que ele quer dizer com isso? Que quando você quer muito aquilo, está muito obcecado, você se trava. Isso é totalmente real no universo da luta. Quando você consegue tirar um pouco o pé, relaxar um pouco e não focar tanto no objetivo final, mas se concentrar no processo todo, você rende muito melhor. Quando eu percebi isso tive as minhas sete vitórias seguidas [de 2014 a 2017].
Eu era muito obcecado com a história de ganhar o cinturão, de ser campeão. Relaxei quando perdi a luta para o Rory [MacDonald, no UFC 170, em fevereiro de 2014] porque pensei: acho que nunca mais vou disputar o cinturão na minha vida, então vou fazer o melhor porque quero lutar bem, deixar um legado. E comecei a lutar com mais calma, mais paciência, menos ansiedade. Minha carreira só cresceu.
Passei a pensar assim observando o Alex Atala [um dos mais prestigiados chefs do país]. Ele treina comigo há oito anos e virou um amigo pessoal, uma espécie de mentor, como meu avô era. Vi o cara, que é o melhor do mundo no que faz, ter outros interesses. Sai para pescar, faz pesca submarina, viaja, veio treinar jiu-jítsu, virou faixa-preta. E ele não deixa de ser o melhor do mundo. Se ele é de altíssimo nível no que faz e não deixa de fazer outras coisas, por que eu também não posso fazer isso?
Voltei a pescar, coisa que eu não fazia mais. Resolvi aprender a tocar violão, meio autodidata, meio com uns amigos que tocam. Voltei a buscar meus hobbies, fazer umas viagens – eu só viajava se fosse para um lugar com estrutura para que eu pudesse treinar também. Fiquei uma pessoa muito mais leve e isso refletiu na minha performance.
Também por sugestão do Alex, estou escrevendo um livro, em parceria com um amigo jornalista que fez faculdade comigo, o Mauro Albano. De certo modo, ele é baseado em erros que cometi e em coisas que aprendi com esses erros. É sobre tomarmos consciência. Hoje eu presto muita atenção no que estou sentindo, no que faço. Antigamente eu só ia vivendo, sem me dar conta das coisas. É uma autoterapia. Um processo um pouco dolorido, porque tenho que entrar em contato com falhas, mas que está sendo incrível.
A princípio, seria um livro de causos, porque convivi com tanta gente interessante e tive acesso a tantas histórias que acho que as pessoas que gostam de lutar poderiam querer saber essas coisas. Comecei a almoçar de vez em quando com o Mauro e ele me entrevistava nessas ocasiões.
Mas ao longo do processo, o livro foi mudando. Aconteceu uma coisa engraçada. Meu pai é músico, toca em restaurantes e bares, e vai a um abrigo para crianças sob tutela do governo para ensinar música. Ele me perguntou se eu podia ir lá um dia conversar com os jovens. Estava mesmo querendo fazer umas palestras comerciais em empresas, contando estratégias de alto rendimento que podem ser aplicadas no universo corporativo, e pensei que poderia treinar essas apresentações com as crianças.
Falei com elas sobre assumirmos a responsabilidade de nossas atitudes e foi muito legal. Disse pro meu pai que eu queria fazer aquilo uma vez por mês. Elaborei um roteiro para elas desenvolvendo temas como resiliência, gerenciamento de tempo, foco, pensamento crítico. São termos até meio clichês, mas eu comecei a puxar pela memória minhas histórias e conto sempre uma ocasião em que tive uma atitude errada, depois buscava outra ocasião em que fiz da forma certa. E, assim, conto como criei exercícios e hábitos para não incorrer mais naquele erro.
Comecei a gravar as palestras e mandar para o Mauro, e esse virou o fio condutor do meu livro. Em vez de histórias aleatórias, fizemos capítulos: assumir responsabilidade, consistência, gerenciamento de tempo etc. Temos que tomar cuidado para não virar livro de autoajuda, mas sim o que os gringos chamam de self improvement. E tem verdade lá, não é só um cara dizendo o que tem que ser feito, cagando regra. Conto minhas falhas, as besteiras que fiz e os detalhes que mudei para tentar melhorar aquilo.
Quando eu era criança, costumava brincar com meus amiguinhos falando para eles pegarem um autógrafo comigo porque um dia eu seria famoso. Achava também que eu ia ganhar dinheiro fazendo o que escolhesse, porque não queria passar de novo alguns sufocos, como ter sido despejado da casa em que morávamos. Mas certamente nunca imaginei que minha profissão me daria a oportunidade de influenciar tantas pessoas. Perdi a conta de quanta gente mudou suas vidas com o jiu-jítsu brasileiro. Percebi então que era minha missão e também minha obrigação alcançar o maior número de pessoas que pudesse.
Estou no caminho das artes marciais há 35 anos, 22 no alto rendimento. Na luta, quando você perde não é uma simples derrota. Você é subjugado fisicamente. Por ser tão extrema, ela também é uma grande oportunidade de evolução pessoal. Acredito que esses insights que tive ao longo de minha carreira, e que estou colocando no livro, podem ser usados por qualquer pessoa.
Acho que inteligência não é só algo inato. É uma coisa que a gente vai desenvolvendo. Eu era muito agitado na escola quando era moleque. Hoje penso que podia ser uma leve hiperatividade. Ficava de recuperação, me interessava por poucas matérias. Mas tive a sorte de estudar em uma escola construtivista muito boa, com bolsa, e os professores me puxavam para cima.
Passei pela faculdade de jornalismo só preocupado com luta, pedindo para amigo colocar meu nome no trabalho e aproveitando muito menos do que poderia. Quando saí, tive um certo medo de ficar estagnado em termos culturais. Estava num meio que não exigia que, por exemplo, eu me interessasse por literatura. Comecei a ler então os livros que eu nunca tinha lido na faculdade. Gostava do autor e lia tudo dele. O hábito continua até hoje. Gosto de história do Brasil e li os três do Elio Gaspari sobre ditadura, por exemplo [A Ditadura Escancarada, A Ditadura Derrotada, A Ditadura Encurralada]. Acabei de ler os três volumes de Getulio, do Lira Neto.
Dizem que eu tenho inteligência emocional e, para mim, ela está muito ligada ao relacionamento humano. Minha mãe e meu avô eram vendedores. Sempre vi, desde minha infância, pessoas com esse traquejo social. Fui obrigado a desenvolver isso.
Por isso, nunca liguei para trash talk. A luta é muito nua a crua. Se eu fosse músico, como meu pai, poderia falar mal de outros músicos que seria apenas a minha opinião, porque isso é uma coisa subjetiva, que tem a ver com gosto pessoal ou pura estratégia de marketing. Na luta não é assim. Na hora que você sobe no octógono você vai ter que defender suas palavras. O trash talk traz, por isso, uma pressão ainda maior para o atleta.
Muitas vezes o trash talk é puro teatro. O cara faz isso porque quer chamar atenção. Acho até meio inocente. Quando os caras começam a falar muito me dá uma vergonha alheia de tão bobo que é aquilo. Fica parecendo telecatch. É meio triste. Para mim, é muito fácil me controlar e não sucumbir.
Por incrível que pareça, nenhum lutador até hoje falou nada no cara a cara para mim. Podem até ter falado na mídia, mas pessoalmente todos foram normais, até porque não dou essa abertura. Se você não estimular isso, eles não vão fazer. O Colby Covington é um cara irritante, mas ele chegou pra mim e falou: “Você saber que isso tudo é teatro, né? Que eu faço isso com as pessoas. Mas eu te admiro”. Nunca teve um hard feeling [ressentimento]. Talvez com o Anderson [Silva], mas foi depois de nossa luta só [no UFC 112, em abril de 2010].
Nunca embarquei nessa história de trash talk também porque não faz parte da minha personalidade mesmo. Desrespeitar outra pessoa não tem nada a ver com o que aprendi a vida toda na arte marcial.
Acho que muita gente subestima minha capacidade, não só porque tenho esse jeito mais tranquilo de ser, mas principalmente porque acham que sou muito bom no chão, mas que em pé vão conseguir me bater. É engraçado porque essas pessoas têm uma surpresa. Meu jogo em pé não é ortodoxo. Ele existe e é eficiente – e muita gente se surpreendeu com isso, acabou tomando golpe em pé, não conseguindo achar a distância. Treino muito com os moleques aqui e dá até um pouco de vaidade. O cara chega e fala: “Vamos fazer um sparring de boxe”. Eu sei que ele quer me bater. Aí eu vou e dou um pau nele no boxe. As pessoas não têm noção do que é alto rendimento.
Meu trabalho é tentar não ser reativo no meu dia a dia. Eu era muito reativo na minha infância. Fui tomando consciência e, principalmente depois de ser pai, isso mudou bastante. Mas é um exercício. Sei que ser reativo na minha profissão vai ser ruim. Não acredito em violência com meus filhos, nem em palmadinha, mas às vezes a reação vem no grito. E, com eles, eu aprendi bastante a cuidar disso.
Sou meio metódico, tenho que tomar cuidado para não virar um robô. Ajo mais com a razão do que com a emoção, mas sou muito emotivo ao mesmo tempo. Quando ouço uma história bacana, é muito fácil eu começar a chorar. Fui ver meu filho na apresentação da escola e ele cantou uma música muito bonita, que vai contando a história do processo de crescimento [Era uma vez]. E eu me segurando. Ou achando que estava, porque depois meu filho me falou: “Papai, a mamãe não chorou, mas eu vi você chorando enquanto eu estava cantando”.