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Blog do Marcelo Alonso

Thiago Marreta: um roteiro pronto para Meirelles fazer Cidade de Deus 2

Sempre que encontro com meu amigo japonês Manabu Takashima, ele faz questão de reafirmar, “Cidade de Deus é o melhor filme que já vi”. De fato é muito difícil não sair do cinema impactado após assistir ao filme de Fernando Meirelles, baseado no livro de Paulo Lins, que conta a história de dois garotos da CDD que seguem caminhos diferentes: Buscapé se transforma em fotógrafo e Zé Pequeno, num ambicioso traficante. A história traçava ainda um paralelo sobre a expansão do tráfico de drogas a partir dos anos 70 no Rio de Janeiro, numa linguagem ímpar que o diretor brasileiro teria trazido da publicidade para os cinemas. Não por acaso, Cidade de Deus é até hoje considerado um marco para a linguagem do cinema.

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Após assistir a vitória de Thiago Marreta sobre o polonês Jan Blachowicz no último sábado, igualando o número de nocautes de Anderson Silva no UFC e passando a ter grandes chances de ser o próximo desafiante ao cinturão dos meio-pesados do maior evento de MMA do mundo, fiquei pensando na riqueza da história deste garoto criado na Cidade de Deus. Um roteiro pronto que certamente renderia uma excelente segunda edição do filme que marcou a carreira do genial Fernando Meirelles.


Thiago de Lima Santos teve a primeira luta na vida aos dois anos de idade, quando foi diagnosticado com uma doença rara. Passou por diversos hospitais sem conseguir um diagnóstico, a ponto de os médicos acharem que ele não iria sobreviver. Enquanto sua barriga inchava na maca de um hospital, o garoto foi salvo pela curiosidade de uma médica estrangeira que o levou para a mesa de cirurgia e o curou. Até hoje a família do lutador não sabe precisar o diagnóstico, mas o fato é que, desde a cirurgia, Thiago passou a ser uma criança normal.

Em 1996, o Rio de Janeiro sofreu uma das piores enchentes da história e sua família perdeu tudo e teve que se mudar para a Cidade de Deus. Na época, Thiago tinha apenas onze anos e passou a viver bem próximo da realidade mostrada por Meirelles nos cinemas. Não foram poucos os amigos conquistados pelo tráfico. Mas graças à educação dos pais e as aulas de capoeira, Thiago não seguiu pelo caminho errado.

Curiosamente, assim como Mané Galinha (personagem de Seu Jorge no filme), o pai de Thiago, Seu Edir, também trabalhava como motorista de ônibus, mas ao contrário do personagem da ficção, fazia questão de ficar longe das festas. E o exemplo do pai trabalhador acabou sendo essencial para manter o filho no caminho do bem. Enquanto via muitos amigos de infância morrendo, sendo presos ou mesmo “ascendendo socialmente” como traficantes, Thiago preferiu seguir seu maior exemplo. E não mediu esforços para fazer o pai orgulhoso. Foi catador de papel, ajudante de caminhão, guardião de piscina, até completar 18 anos e ser incentivado por Seu Edi a se alistar no exército, curiosamente na mesma época em que o filme sobre a sua comunidade explodia mundialmente.  Mas se por um lado a disciplina militar acabou o ajudando a encontrar o caminho das artes marciais, por outro chamou a atenção do tráfico interessado na habilidade com armas do garoto que serviu por sete anos na brigada paraquedista.

Graças aos ensinamentos de seu Edi, Thiago conseguiu se esquivar. Até que no Natal de 2010, 15 dias depois da sua estreia no MMA, ele recebeu o mais duro golpe de sua carreira. A morte do maior incentivador o fez entrar em depressão e querer largar as lutas, até que um amigo o levou para conhecer a TFT, academia de Otávio “Tatá” Duarte e Philip Lima, que passaram a ser um misto de treinadores e pais adotivos para Thiago, que graças a sua potência no ground and pound ganhou o apelido de “Marreta” do mestre Philip Lima.

A capacidade de aprender com as derrotas

Com a ajuda dos mestres, Thiago descobriu seu talento e desenvolveu uma enorme capacidade de não esmorecer nas derrotas, passando a treinar ainda mais para corrigir seus defeitos independentemente do resultado das lutas. Quando conseguiu entrar no TUF Brasil 2, em 2012, na categoria até 77kg, ainda estava bastante cru, tanto que foi a última escolha de Fabrício Werdum. Perdeu nas quartas de final para o campeão Léo Santos. Não foi contratado, mas continuou treinando até que conseguiu uma chance indigesta no UFC no ano seguinte, contra o campeão da primeira edição, Cezar Mutante. Thiago foi finalizado com uma guilhotina, e logo na sequência foi convidado em cima da hora para outra roubada na divisão de cima, substituir um lutador enfrentando o faixa-preta da Nova União Ronny Markes. Markes vinha de uma luta de três rounds contra Yoel Romero e era considerado favorito absoluto, mas Thiago conseguiu um chute nas costelas do compatriota, anotando seu primeiro TKO no UFC, a 53 segundos do 1º round.

Desde então decidiu subir para os médios, onde fez 13 de suas 16 lutas no UFC. Com o apoio dos mestres da TFT, em 2015 passou a fazer seus camps na Flórida, na American Top Team, onde conseguiu se desenvolver em todas as áreas. Engatando impressionantes sequências de quatro nocautes intercaladas por derrotas para Gegard Mousasi, Eric Spicely e David Branch.

Em 2018, ao perceber que a caminhada para o cinturão dos médios poderia ser mais longa, decidiu se arriscar na divisão dos meio-pesados e surpreendeu com três nocautes consecutivos: primeiro contra Eryk Anders, depois contra Jimi Manuwa e, no último sábado, contra o polonês Jan Blachowicz, quarto do ranking. Uma vitória que botou o nome de Marreta entre os maiores nocauteadores da história (empatado com Anderson Silva e a um nocaute do recordista Vitor Belfort) e tem tudo para levá-lo à disputa de cinturão de uma das divisões mais disputadas da copa do mundo do MMA, onde reina absoluto Jon Jones.


Pessimistas podem argumentar que as chances de Thiago vencer um dos maiores de todos os tempos são pequenas, mas e daí? O fato é que com ou sem cinturão, por sua história de superação e por tudo o que conquistou no esporte, Marreta já é um exemplo. Não custa lembrar que o filme sobre José Aldo foi lançado depois de ele perder o cinturão para McGregor, o que de maneira alguma tirou o brilho do seu exemplo de superação e de todas as conquistas que conseguiu na carreira. Não por acaso o filme foi um sucesso estrondoso.

No caso do Thiago Marreta, ainda existe uma cereja do bolo para completar este roteiro pronto para a segunda edição de Cidade de Deus. Ele se preocupou em fazer um projeto social voltado para cerca de 200 crianças e adolescentes em uma academia montada dentro da comunidade, que oferece aulas de judô, jiu-jítsu, muay thai e boxe, os ajudando a conquistar, por intermédio da filosofia da luta, seus objetivos sem precisar se perder do caminho do bem.

Um roteiro pronto que, se trabalhado pelo genial Fernando Meirelles, tem tudo para transformar Cidade de Deus 2 em mais um sucesso de bilheteria. Com a garotada reeditando a frase que marcou a primeira edição. “Zé Pequeno é o c*****, meu ídolo é o Thiago Marreta”.

OS 3 GRANDES ENSINAMENTOS DE GSP

Por falar em grande exemplo, não tenho como deixar de homenagear aqui um dos gigantes deste esporte, o canadense George St-Pierre, que na última semana anunciou sua aposentadoria, aos 37 anos, com um cartel de 28 lutas e apenas duas derrotas. Apesar de não acreditar que um cara competitivo como GSP consiga realmente parar de lutar no auge de sua forma, não tenho como não comentar sua decisão chamando a atenção para três enormes contribuições que deixou para a evolução deste esporte.

A primeira delas é o Entendimento Tático do MMA. Ao contrário de outros campeões, como Jon Jones e Khabib, que nunca sentiram o gosto da derrota, GSP sempre fez questão de atribuir suas grandes evoluções técnicas às derrotas, que o levaram a se aperfeiçoar em várias áreas. Primeiro no wrestling, depois no jiu-jítsu, onde cansou de vir ao Brasil aprender com os melhores. E sendo o primeiro lutador com altíssimo nível técnico nas três áreas (striking, quedas e chão), GSP passou a usar sua enorme caixa de ferramentas de acordo com o que os oponentes lhe ofereciam. Desta maneira, se transformou no grande pesadelo estilístico dos meio-médios por longos anos, tendo defendido nove vezes seu cinturão.

 

O segundo grande ensinamento que GSP deixa para o esporte é que Modalidades puras são aplicadas de maneira diferente no MMA. Ou seja, o melhor striker no kickboxing não será necessariamente o melhor na luta em pé no MMA, assim como um campeão de wrestling pode não ser tão eficiente nas quedas quando adicionadas todas as variáveis do esporte. Originário do karatê Shotokan, GSP aprendeu wrestling posteriormente e aplicou a modalidade no MMA como nenhum wrestler conseguiu, sendo até hoje o detentor do recorde de quedas do evento.

Mas talvez a maior lição deixada por GSP esteja em mostrar que não é necessário ser um trash talker para vender PPV. Por ter iniciado sua formação numa arte marcial japonesa, GSP nunca entrou no jogo dos falastrões que os promotores adoram e mesmo assim sempre esteve entre os maiores vendedores de pay per view da história do UFC.

Numa entrevista quando veio ao Brasil treinar na Barra Gracie, o perguntei como ele, sendo canadense, conseguia o apoio da maioria da torcida norte-americana sendo ainda um dos melhores vendedores de pay per view. E ele, com aquela simplicidade que lhe é peculiar, me deu uma resposta que nunca esqueci. “Quando lutei com o Matt Hughes pela primeira vez, a torcida estava contra mim. Quando perdi, as pessoas viram que eu era normal como eles. Tinha vitórias e derrotas na vida, dias bons e ruins. Na revanche, de maneira natural, a torcida passou a me apoiar e quando venci. O fato é que nada gera mais interesse dos fãs que a identificação com a superação, algo que todos nós passamos no nosso dia a dia. Por isso acho que os fãs nunca mais me abandonaram”.

Realmente uma pena que mais este grande gênio do MMA tenha decidido pendurar as luvas. Que exemplos como GSP, e agora Thiago Marreta, sirvam para mostrar às novas gerações que treinar duro é muito mais importante do que criar personagem para fazer sucesso neste esporte.

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