Pular para o conteúdo principal

Como uma superatleta criou um projeto social para incluir meninas no universo do wrestling

Aline Silva, a maior vencedora da luta olímpica do país, se divide entre as seletivas para os Jogos de Tóquio e suas alunas do Mempodera

Aline Silva não era exatamente flor que se cheirasse. O julgamento é dela: “Fui criada só pela minha mãe”, ela conta. “No quintal da família, era minha avó que cuidava da gente. Mas ela teve depressão profunda e era muito difícil me controlar, porque eu sempre fui terrível. Ficava sempre na rua e, em uma ocasião, eu tive um coma alcoólico, o que alarmou bastante minha mãe e a família toda.”

“Eu sempre gostei de lutinhas, assistia Power Rangers, por isso escolhi o judô. Era o único esporte de luta”, conta Aline. “Minha mãe queria que eu fizesse jazz e informática. Minha família e amigas não apoiavam muito a escolha da luta. Achavam que o judô era um esporte masculino, que ia me deixar masculinizada.” A opinião deles mudou quando começaram a ver os benefícios que ele trazia para Aline. “Só me apoiaram mesmo quando começaram a ver diferença no meu comportamento. Começaram a ver que o esporte estava me educando, mudando minhas companhias. Deixei de ficar na rua, deixei de fazer coisa errada.”

O esporte não só mudou Aline como a fez ter um rumo na vida. Quando tinha cerca de 16 anos, ela veio treinar em São Paulo, no Centro Olímpico do Ibirapuera. O professor de judô do complexo, Joenilson Rodrigues, dava aulas de wrestling – ou luta olímpica – também. Aline não sabia nem do que se tratava. “Desde o começo ele insistiu muito para eu treinar, mas eu não fazia ideia do que era. Achava que era um esporte que ninguém praticava no mundo.”

Estou [ali] para ser boa no que faço, para ser forte, para fazer performance no esporte. 

Os desafios do esporte

Aline disse que as coisas foram muito difíceis para ela no esporte, especialmente no começo. Não por ser ela. Mas especialmente por ser mulher. “O wrestling é um dos esportes mais machistas que eu conheço”, ela afirma, para explicar: “É dividido em dois estilos. O greco-romano é o mais conhecido, porque foi o primeiro estilo da história, é o mais tradicional. Nele, as mulheres não lutam. A diferença é que não se usam as pernas, é do quadril para cima. O estilo livre, como o próprio nome sugere, é livre, a gente usa o corpo inteiro, e neste estilo tem homens e mulheres”.

Além de só estarem presentes em uma das duas categorias do esporte, as mulheres têm muito menos categorias de peso para se encaixarem. Para homens, a maior categoria é 130 quilos. Para mulheres, é 76 quilos – e isso hoje. Em 2012, o máximo permitido era a divisão de 72 quilos. “Uma mulher alta e grande de 80 quilos não pode fazer wrestling, por mais apaixonada que seja. Isso para mim é um machismo imenso, até porque a justificativa para isso é uma das coisas que mais me irritam. Já ouvi várias vezes que, se as categorias de peso fossem muito grandes, as mulheres ficariam feias na malha, porque mulher gorda de malha não ficaria legal.”

Para Aline, a mensagem que isso passa é que a mulher está no esporte para entreter, não para performar. “Na verdade, eu não estou ali para ser bonitinha nem para ser sensual. Estou para ser boa no que faço, para ser forte, para fazer performance no esporte. Pessoalmente, enfrentei muita dificuldade quando a categoria máxima era 72 quilos e eu pesava 80. Minha única saída para continuar praticando o esporte que eu tanto amava era desidratar muito.” O wrestling também foi um dos últimos esportes a incluir mulheres nos Jogos Olímpicos. Isso só aconteceu em 2008, embora o esporte esteja presente nos Jogos desde as primeiras edições das Olimpíadas da Antiguidade.

Aline cita essa dificuldade de baixar o peso como a maior que enfrentou, mas há várias outras – como o reconhecimento no esporte. “Sendo a maior atleta do Brasil, como mulher não tenho o mesmo reconhecimento que outros homens com metade ou menos da metade do currículo que eu tenho.” Ao todo, juntando as conquistas do judô, do jiu-jítsu e do wrestling, a atleta contabiliza cerca de 200 medalhas. Os títulos mais importantes são o vice-campeonato mundial júnior, em 2006, que ainda é um título inédito no Brasil mesmo mais de 10 anos depois, e o vice-campeonato mundial sênior, em 2014. Aline é também a maior medalhista de Jogos Pan-Americanos de wrestling do país: são 3 pódios.

A ideia do projeto social

Em 2014, Aline Silva já vinha fazia algum tempo pensando que precisava devolver para o esporte e para o universo tudo o que o esporte e o universo tinham dado para ela. “Me sinto abençoada pelo esporte. Tudo o que conquistei foi por causa dele. Aquela era a hora de eu começar a pensar em devolver realmente.” Como fazer isso? “A melhor forma que encontrei foi a de tentar oferecer para outras meninas tudo o que eu tive com o espore. Queria tentar fazer com que a mágica do esporte que aconteceu na minha vida acontecesse também com outras.”

Em uma roda de bate-papo sobre empoderamento feminino através do esporte, Aline conheceu duas mulheres, Ashleigh Huffman e Sarah Hillyer, criadoras de um programa de mentoria para mulheres que usam o esporte em seus programas, chamado Global Sports Mentoring Program. “Ele reúne mulheres de todo o mundo para discutir como empoderar meninas por meio do esporte. Passamos dois meses nos Estados Unidos em um intercâmbio e montamos um plano de ação. Depois voltamos para nossos países para tentar implementar esse plano com a ajuda deles.”

Foi o que fez Aline Silva. Lá, ela escreveu o projeto do Mempodera. “Desde o começo, quando comecei a treinar judô, 90% dos alunos nos treinos eram homens. Sempre teve poucas meninas. É como se a gente não pertencesse àquele espaço e como se luta não fosse para menina. Eu queria mudar um pouco essa história.” Além disso, 49% das meninas abandonam o esporte, seis vezes mais do que os garotos.

O Mempodera foi inicialmente desenhado para dar aulas de wrestling para meninas. Mas não só isso. “Eu tive que aprender inglês só para participar desse intercâmbio. Mas ele abre portas para o atleta que quer viajar, competir. Pensei então num programa que oferecesse aulas de inglês e de wrestling para meninas, a princípio, além de um módulo de empoderamento, em que falamos da vida, como lidar com conflitos e outras coisas importantes para empoderá-las.”

O projeto social, que funciona desde 2018 em Cubatão, onde Aline mora, passou a atender também meninos neste ano. E foi uma ótima experiência. “A estratégia funcionou muito, porque, uma vez que eu tinha turmas de meninas muito bem consolidadas, eu trouxe os meninos e consegui ter um equilíbrio. Ainda tenho muito mais meninas do que meninos praticando – e isso é um cenário inverso, uma coisa que nunca vi em nenhum outro lugar do Brasil.”

Aline hoje se divide entre CEO do Mempodera e os próprios treinos. Ela quer participar da Olimpíada de Tóquio em 2020 e está por enquanto cada vez mais focada nos classificatórios. Para isso, conta com a ajuda de uma rede de apoio composta pela mãe, Lídia, e por uma professora de wrestling, Mayara. “Não é fácil. Várias vezes eu preciso realmente escolher o que é mais importante naquele momento. Ainda bem que tenho essas pessoas incríveis que fazem esse trabalho comigo.”

A atleta pretende expandir seu projeto para atingir mais crianças e adolescentes. “A ideia é sempre iniciar pelas meninas, para que elas se sintam à vontade, sintam que pertençam àquele ambiente, e depois trazer os meninos e tentar através de várias estratégias manter esse equilíbrio, esse balanço. Nosso foco não é o rendimento esportivo, apesar de conquistarmos várias medalhas e de eles mesmos desejarem o rendimento. Nosso foco é formar cidadãos e formar pessoas.”