Pular para o conteúdo principal
Blog do Marcelo Alonso

O chute que tem tirado o sono dos lutadores de MMA

Em 27 anos cobrindo este esporte confesso que não imaginava, em pleno ano de 2019, ver profissionais do esporte surpreendidos com alguma nova técnica; mas definitivamente esta enorme caixa de ferramentas chamada MMA não tem fundos.

Depois das finalizações de Royce Gracie, o ground and pound de Coleman, os low kicks de Ruas e Rizzo, o caratê de Lyoto e as cotoveladas de Jon Jones, eis que surge o Panturrilha Kick, uma variação técnica de low kicks que tem tirado o sono dos lutadores de MMA.

A técnica começou a ficar conhecida através de atletas da ATT, como Amanda Nunes e Thiago Marreta, mas logo se difundiu e hoje tem aparecido praticamente em todas as edições do UFC. No sábado passado, por exemplo, o neozelandês Dan Hooker a utilizou com insistência para tirar a base do wrestler americano Al Iaquinta e vencer os três rounds com tranquilidade, da mesma maneira que Dhiego Lima fez contra Luke Jumeau.

Ao invés dos low kicks (na altura da coxa ou joelho), tão comuns no kickboxing e no muay thai, este chute é aplicado na lateral externa da panturrilha. Um ângulo que, inclusive, dificulta a defesa normalmente usada em low kicks e causa uma dor aguda, muitas vezes levando o lutador a mancar e até trocar de base.

Ortopedista oficial de vários lutadores do UFC, Rickson Moraes explica que a falta de proteção muscular na área é certamente a principal causa da eficiência do golpe: “Esta área, junto à cabeça da fíbula, é desprovida de 'envelopes de partes moles', então todas as estruturas ali presentes sofrem um trauma direto com este chute lateral. Naquela área, além da estrutura óssea da cabeça da fíbula, estão ligamentos, o tendão fibular (curto e longo) e o nervo fibular comum. São tantas estruturas, que do ponto de vista científico é até difícil explicitar qual seria a principal causadora dessa dor aguda”, explica o médico, que também é faixa preta de jiu-jítsu.

Origem: muay thai, capoeira ou kung fu?

Mas por que cargas d'água esta técnica tão eficiente já não era utilizada em eventos de kickboxing, como K-1 e Glory? “No kickboxing, a gente sempre chutava a coxa, nunca vi ninguém chutar ali embaixo. Na realidade, a primeira vez que vi este chute sendo utilizada com eficiência foi na luta do Antônio Pezão com o Mark Hunt em 2013. Me impressionou o fato que, mesmo sendo um casca-grossa acostumado aos chutes mais violentos no K-1, o Hunt caiu de joelho e começou a mancar muito. Depois, conversando com o Katel na ATT ele me contou que já vinham treinando muito este chute com o Pezão e todos na equipe”, revela Pedro Rizzo, ex-lutador do UFC e campeão europeu de kickboxing representando a lendária Chakuriki.

Discípulo de Fábio Noguchi, Katel Kubis conta que aprendeu o chute com o mestre formado na lendária Chute Boxe: “Trouxe esta técnica para a ATT em 2009. O Noguchi fazia muito este chute na panturrilha acima do tornozelo e eu sempre tive convicção da eficiência desta técnica no MMA, mas quando cheguei aqui o pessoal não acreditava muito, até que o Wilson Gouveia, lutando no MFC no Canadá, nocauteou seu oponente no 1º round. De lá pra cá o quadro mudou. Hoje nos treinos de striking, todas as quartas e sextas, tenho de 30 a 40 profissionais treinando esse chute que a gente desenvolveu: Amanda Nunes, Cigano, Thiago Marreta, Santiago Ponzinibbio, Joanna, Formiga, Pedro Munhoz, Nina Ansaroff, Dhiego Lima, Douglas Lima”, revela Katel, apontando sem titubear a campeã Amanda como o chute mais forte da equipe: “Ela é impressionante. Depois vem o Cigano e o Marreta, que ainda está ganhando confiança em usar esta técnica”.

Um outro treinador brasileiro também vem aplicando o panturrilha kick há um bom tempo em sua equipe de MMA. César Carneiro é mestre de capoeira e um dos líderes da MMA Master. O baiano revela que desenvolveu a técnica quando participava de um filme de Jean Claude Van Damme na Tailândia: “Fui gravar o filme "The Quest", do Jean Claude Van Damme, fiquei três meses na Tailândia e percebi que ninguém fazia isso lá. Como sou capoeirista, usava este chute na perna da frente para tirar o equilíbrio do oponente, só que comecei a sentir que aquilo causava uma dor forte, então trouxe isso para os meus atletas do MMA.

Ex-campeão do UFC e atual embaixador do UFC no Brasil, Rodrigo Minotauro revela que conheceu a técnica quando foi treinar com Carneiro e seu sócio Daniel Valverde na Flórida em 2008: "Lembro exatamente que ele já insistia nisso lá atrás. É um tipo de chute que não tinha muita defesa porque, segundo ele, tirava a base do oponente. Na época ele era o treinador da Amanda, que foi uma das primeiras a usar esse tipo de técnica. Agora o negócio viralizou”, revela a lenda.

Harai Gueri: técnica de monges

E antes que comecem a polêmica sobre quem é o verdadeiro criador do panturrilha kick, vale lembrar que não há nada mais natural nas artes marciais do que uma mesma técnica ser desenvolvida em momentos diferentes por mestres diferentes. Segundo o mestre de caratê Vinício Antony, que já treinou os campeões do UFC Vitor Belfort e Lyoto Machida, e é autor do livro “A Arte Oculta do Karatê”, este chute adaptado pelos dois treinadores brasileiros para o MMA já era praticado há muito tempo: “Ele era usado no kung fu e foi importada pelo caratê com o nome de Harai Gueri. Essa técnica foi desenvolvida por monges com o objetivo de causar o mínimo dano ao oponente, pois acreditavam que quanto mais dano causassem, mais sofreriam numa próxima encarnação (Karma). Então buscavam pontos de acupressão, que hoje são inclusive usados na acupuntura, para causar uma dor aguda mas ao mesmo tempo não causar muito dano. O lutador que não é aguerrido e sente aquela dor fortíssima se desencoraja”, explica Vinicio, dando outro exemplo de uma técnica recriada: “O homem tem duas pernas, dois braços e uma cabeça, é natural que técnicas que foram desenvolvidas há centenas de anos passem por períodos sazonais ou sejam 'recriadas' por outros praticantes. É o caso do gogoplata do Nino, que é o KakatuJimê. Você encontra desenhos desta técnica na literatura desde 1300. Não quer dizer que o Nino não tenha criado do jeito dele”.

Técnicas de defesa distintas

Como o MMA é um grande jogo de perguntas e respostas, onde toda técnica sempre terá uma, ou várias, outras para neutralizá-la, já começam a surgir diferentes formas de defesa para o chute para o panturrilha kick. Curiosamente, os quatro especialistas que consultei para fazer esta reportagem me sugeriram respostas distintas.

Pedro Rizzo, por exemplo, gosta de levantar um pouco a perna e virar o joelho para fora: “Assim o golpe pega na canela (ou joelho) e é neutralizado”, explica The Rock.

Já César Carneiro, treinador da MMA Master, prefere evitar o choque: “A galera do muay thai acha que bloqueando você vai parar o golpe, quando na realidade piora a situação. A gente tem um atleta chamado Frank Carrillo, que lutou em 2014 com o Mike Rio. O treinador do Mike mandou ele bloquear com a canela e o garoto acabou quebrando a perna. O correto é tirar a perna da frente. Mas para conseguir fazer isso o lutador tem que fazer milhares de vezes para automatizar. A gente tem uns drills e nossos atletas repetem à exaustão. Sem dúvida a melhor defesa é evitar o choque”.

Segundo Vinício Antony, o caratê já tinha uma técnica de defesa para este chute: “Nós chamamos de Namiashi. Consiste em fazer um movimento de rotação do quadril ao mesmo tempo em que se executa um movimento de eversão do pé, levantando ele quase na altura do quadril. Assim o chute passa, o que te permite contragolpear o oponente de encontro”.

Já o treinador da ATT Katel Kubis revelou que utiliza técnicas com e sem contato de acordo com o estilo de cada atleta: “Como toda técnica de ataque, já existem defesas. Temos três ou quatro defesas que já estão sendo praticadas por nossos atletas”. 

Nada mais normal para quem pratica esta técnica há mais de 10 anos. Aliás, segundo Katel, seus alunos já começam a praticar uma variação de chute nas costelas desenvolvida por seu mestre, Noguchi, há um bom tempo. Se terá tanto sucesso quanto o panturrilha kick, só o tempo poderá dizer. A única certeza que temos é que graças à criatividade de treinadores e lutadores, como Noguchi, Katel e Carneiro, que o MMA continua sendo este organismo vivo e em constante evolução, cujo grau de imprevisibilidade é diretamente proporcional a capacidade de renovação.

Assine o Combate | Siga o UFC Brasil no Youtube